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Notícias

25 de Julho, 2014

A queda do império

Alexandre Abreu |
7:20 Quarta, 23 de Julho de 2014

Todos os impérios nascem, crescem e morrem - e o império americano não será excepção. Nos últimos anos, têm-se somado os sinais de que a hegemonia americana está já em fase de declínio. O problema é que estas transições costumam ser turbulentas e nada bonitas de se ver.

A notícia passou quase despercebida na comunicação social de muitos países, mas o seu significado é de grande amplitude. Na 6ª Cimeira dos BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), realizada em Fortaleza entre 14 e 16 de Julho, foram oficialmente criadas duas novas instituições financeiras internacionais: o Banco de Desenvolvimento dos BRICS, que contará com um capital de 100 mil milhões de dólares e cujo enfoque principal consistirá na realização de empréstimos concessionais para projectos de infraestruturas; e o Acordo Contingente de Reservas (ACR), que contará com uma base de capital inicial idêntica e que terá como objectivo proporcionar apoio financeiro de emergência a países com dificuldades ao nível da balança de pagamentos.

Não é preciso saber muito de economia internacional para perceber que estas duas instituições têm natureza e objectivos idênticos ao Banco Mundial e ao Fundo Monetário Internacional, respectivamente. Estes últimos são duas das peças fundamentais da arquitectura financeira internacional da segunda metade do Século XX, desenhada e erguida, não por coincidência, no preciso momento em que a hegemonia norte-americana emergiu finalmente incontestada após a "Guerra dos 30 Anos" (1914-1945) em que os EUA derrotaram as pretensões da Alemanha e Japão a sucederem hegemonicamente a uma Inglaterra em declínio há décadas. E são também mecanismos fundamentais de reforço dessa hegemonia: os EUA controlam os processos decisórios nestas duas instituições e utilizam-nos de diversas formas para reforçar a sua dominação, com destaque para a abertura, privatização e liberalização aceleradas das economias ("o proteccionismo dos mais fortes") como contrapartida para a concessão de auxílio financeiro de emergência. Como dizia John Adams, segundo presidente dos EUA, há duas formas de conquistar um país: pela espada e pela dívida.

Também não é preciso perceber muito de política internacional para perceber que a criação do Banco dos BRICS e do ACR constitui um desafio deliberado ao domínio hegemónico norte-americano na arena financeira internacional, que aliás se sucede aos repetidos apelos (frustrados) que os BRICS têm feito nos últimos anos no sentido de se proceder a uma alteração da estrutura decisória do FMI e BM de modo a melhor reflectir a gradual emergência de um mundo multi-polar. Quando os decisores políticos da generalidade dos países sabem que passam a poder contar com mais do que uma fonte possível de financiamento quer para a construção de infraestruturas quer para a concessão de liquidez de emergência, a dependência e submissão face às instruções emanadas de Washington reduz-se significativamente. E se o Banco Mundial estava longe de ser o único banco multilateral de desenvolvimento (existindo há muito uma multiplicidade de outros bancos de desenvolvimento, designadamente de carácter regional, como o Banco Europeu de Investimento ou os Bancos Asiático e Africano de Desenvolvimento), a criação do ACR constitui a primeira tentativa séria de contestação do monopólio do FMI ao nível da concessão de liquidez de emergência. A esse propósito, note-se como a própria União Europeia, espaço sub-imperial historicamente alinhado com os EUA, não avançou sozinha para a concessão de liquidez de emergência aos seus membros no contexto da crise dos últimos anos, tendo-o feito no contexto de uma "troika" em que, naturalmente, a inclusão do FMI constitui acima de tudo um sinal de vassalagem financeira face à potência hegemónica.

E estes sinais somam-se a muitos outros que nos surgem de forma gradual, compondo um quadro que só acabará por se tornar nítido na longa duração histórica: a crescente preponderância geopolítica da China em África; a ultrapassagem dos EUA pela China como primeira economia mundial em termos de PIB total; a cada vez maior incapacidade dos EUA assegurarem vitórias militares nas campanhas imperiais a que se dedica (Vietname, Iraque, Afeganistão). A própria instabilidade geopolítica crescente a que temos assistido nos últimos anos, com tensões inter-imperialistas no Sudão, Geórgia, mar do Sul da China, Síria ou Ucrânia, para citar apenas alguns exemplos, tem sido interpretada por numerosos analistas com resultante da tentativa desesperada de um império cada vez mais desprovido de dinamismo económico alargar cada vez mais a sua área de influência como forma de compensar essa perda de robustez - e da resistência cada vez mais ousada de potências rivais menos dispostas a aquiescer perante a hegemonia norte-americana.

É certo que as notícias da morte dos EUA como potência hegemónia são, para já, claramente exageradas. Os EUA continuam a imprimir a moeda de reserva internacional, a controlar as principais instituições políticas internacionais, a exercer uma forte hegemonia cultural global e a deter, de longe, as mais poderosas forças armadas em todo o mundo. Mas todos os sinais sugerem que estão já em declínio e que caminharemos inexoravelmente em direcção a um mundo multi-polar até que, num futuro seguramente ainda longínquo, outra potência hegemónica acabará por emergir dominante.

O problema é que estes processos de transição hegemónica não costumam ser nada bonitos de se ver. A anterior envolveu duas guerras mundiais num período de 30 anos. Como será a próxima?



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